sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Fotografia

"Análise

Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo."

Fernando Pessoa, 1911



Os olhos costumam ser o espelho da alma. Vistos de perto, são capazes de dizer muito do que se imagina, vitrine permeável da essência do ser. Ultrapassar esta fronteira vítrea é entender aquilo que passa a quem se olha, é pedir livre permissão a postar-se como o observador exclusivo, é despir a veste do observado.

Os espelhos não são bastante para olhar o próprio olhar. Posto que espelhos, é apenas imagem refletida. Mas não importa o olhar-se, e sim olhar o próprio olhar, o que se vê e da forma como se vê. A abstração dilui-se então em cores distribuídas na paleta, e elas dançam, compõem a imagem, fazem caretas sarcásticas ou sorrisos convidativos. É a porta que se abre, é a casa que se sente.

Assim andava pelas ruas da cidade, como uma lente móvel atraída pelas cores, texturas e movimentos ao redor. Parava o olhar aos mínimos detalhes despercebidos pela maioria dos olhos. Registrava espetáculos dançantes das folhas secas levadas pelo vento, dos passos em marcha ritmada da jornada diária, dos pés, dos pisos, dos tons impressionistas formados pelo gradiente perfeito do azul no céu, dos rastros espectrais de objetos apressados, dos sujos contrastes do meio fio.

Na retina impregnavam-se tais imagens, num deslumbrante acervo, que lembrava todos os dias antes de dormir. Sentia-se aliviado, como se a nostalgia pairasse sempre no ciclo temporal que é o dia, o único que importava. A felicidade marcava os vincos da face quando olhava o ventilador de teto a girar sobre seu corpo, sozinho na cama. E dele rotações representadas pela suave penumbra sobre os olhos, espirais de emoções. Pensou como seria se tais imagens fossem reveladas, se fosse possível registrar em fotografias o que viu durante o dia. Poderia apreciá-las a qualquer momento, rememorar instantes, percepções.

Comprou uma câmera. No dia seguinte, empunhada diante dos olhos, saiu pelas mesmas ruas que sempre circulou, procurou as mesmas faces que sempre o atraíram, deixou-se admirar pelas mesmas cores que sempre reluziram diante de si. Cada disparo preenchia uma lacuna adormecida há séculos, a satisfação icástica que impregnava-se como cristais de prata num papel fotográfico. Era o mundo diante de sua lente. Nada o escapava.

Na quarta rua em que passava, tão entorpecido pelas lancinantes formas urbanas, deparou-se com um enorme espelho. Viu-se fotografando. Como uma estátua perdida, exposta num lugar errado, fora do contexto da curadoria, desejou ser invisível ou um ente diáfano com livre circulação. Talvez assim o fosse, já que o refletido no grande espelho era nada mais que intocáveis transeuntes apressados de expressões cerradas. Porém quem o intimidava era esta mesma estátua deslocada, de olhar direcionado ao dele próprio. Afastou a câmera da face, correu-lhe a sensação de baque, eriçou-lhe os pêlos, corroendo as estruturas de mármore que compõem sua alma.

Sentiu-se estranho ao notar que, mesmo se os cacos desmoronassem sobre a calçada, juntando-se ao lixo numa mixórdia deserdada, tudo continuaria da mesma forma de sempre. E logo por esta malfadada torre inconveniente de observação e seu intento em revelar fotografias do intocável dia-a-dia. Quem era aquele indivíduo com pretensão de capturar o sentido natural das coisas?

Sentiu-se pequenino, mas não resistiu aos grunhidos dos pombos sobre os fios contrastantes ao céu anil. Levantou a máquina e, ao pressionar o botão, um velho com vincos profundos na face e barba cinzenta o esbarrou, num brusco solavanco que abalou a tênue estrutura de mármore. O xingamento deferido pelo velho terminou por rompê-la. Desmoronaram os cacos da torre de observação no meio das vias, pedregulhos interferentes ao tráfego. Era demais para ele.

Preferiu guardar a máquina. Como resposta aos conflitos, concluiu que não nasceu com dom para fotografia, pesando-lhe o fardo de fotógrafo invasor da realidade, paparazzo da natureza. Mas não abandonou o costume de observar com os próprios olhos, agora com a cicatriz da pequenez diante dos fatores do mundo. Era como se a torre de observação reduzisse de tamanho, com a altivez de um naco de grama no pasto extenso.

Sentado na praça no banco cinza de concreto e textura áspera, olhava à sua volta o verde mal capinado, o chafariz poluído refletindo as silhuetas dos prédios, os corpos cheios de sono cobertos de panos rudes. A admiração tornou-se amarga. Percorria com a palma da mão o concreto do banco, como se tentasse capturar, num processo osmótico, aquilo que o rodeava. Correu-lhe uma lágrima na face. Sentiu-se inútil.

No dia seguinte, trancou-se em casa, no quarto escuro. Não queria ver nada. Porém não o escapavam as imagens captadas durante o dia. Inconsciente, organizava cada uma delas mentalmente, num invisível portifólio.

Esta noite não fechou os olhos, apenas olhava a escuridão, como um farol quebrado.

O sol raiou pela janela e viu-se obrigado a levantar. No caminho ao banheiro, percebeu um envelope no chão, fechado, deixado pelo vão da porta do apartamento. Pegou, não notou remetente algum. Ao abrir, deparou-se com fotografias. Incrivelmente, eram as mesmas imagens que captou com o olhar nos últimos dias. Pasmado, não pôde deixar de se surpreender com a singeleza e naturalidade das imagens. Eram de diversos tipos, a silhueta negra do pombo contínua aos fios elétricos onde pousava, contrastando ao anil do céu, os vincos enrugados do rosto do velho que passava, os pés sujos, em close, dos mendigos que dormiam sob cobertores rudes e curtos, a tranqüilidade conformada do lago sujo, onde refletiam-se as silhuetas dos prédios. Contudo, havia um atenuante: todas eram melancólicas, de ar triste, soturno. Lembrou-se da véspera, quando, sentado na praça, uma gota de lágrima percorreu-lhe o rosto; sentiu-se novamente um nada.

Eram lindas fotos, comparadas às consagradas de poucos nomes da fotografia que ele conhecia. Estava encantado. Perguntou-se como era possível revelar o que viu, da mesma forma em que outrora havia desejado. Pensou em pendurar algumas num quadro, mas não passava de lapsos de euforia. Não tinha coragem de mostrar a ninguém as fotografias. Era seu olhar que reconhecia ali, e angustiava-se por se notar tão insignificante quanto no momento em que o registro foi feito. A busca inconsciente pelo próprio olhar havia terminado até o momento, e o revelou melancólico. Guardou todas as fotografias numa caixa.

Todos os dias, um novo envelope chegava, com os registros do dia anterior. O sentimento era o mesmo, de admiração e resignação. Colocava tudo na caixa, escondida num baú. Às vezes, antes de dormir, pegava as fotos, olhava uma por uma, relembrando-se do momento em que, sozinho, compreendia o mundo ao redor. Era um mundo melancólico.

Passaram-se anos, décadas. Graduou-se como engenheiro, casado e três filhos bem criados. Das fotografias de família expostas nas estantes da sala, nenhuma foi tirada por ele. Jamais pegou uma câmera na mão desde o dia em que se viu fotografando num espelho da rua.

Morreu não muito idoso, taciturno, melancólico.


Décadas depois, a exposição da Galeria de Artes reunia um acervo fotográfico que percorreu quatro cidades. Mais de duzentas visitas diárias, e com curadoria da filha do autor das fotografias, que também é fotógrafa.

"Só depois que meu pai faleceu descobrimos uma caixa com todo este acervo. Fiquei impressionada com o que vi. Acho que estas fotos foram tiradas como passatempo em sua juventude. Depois que casou devia ter se cansado."

Ela revelou que nunca viu o pai com uma câmera na mão, e que ele até tinha certa aversão ao ofício.

"Mas ao ver estas fotografias, lembro de meu pai nos momentos de solidão, pensativo. Eu sempre o admirava e tentava imaginar o que se passava por sua cabeça."

2 comentários:

Anônimo disse...

Pedro... estou arrepiada. Pode ser que seja de frio =\
Você me encantou dessa vez imensamente. Poeta! ^^

Anônimo disse...

Poeta ou ator?

Acho que vc é tão bom ator que as pessoas acreditam que vc é poeta! rs

Os sentimentos da alma traduzidos em imagens de palavras... Que mergulho magnífico nesse universo infinito de imagens arranjadas.

Beijo

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