quinta-feira, 5 de junho de 2014

Homem lixo


 Se pensasse em comida, a fome batia, remoía o estômago e trepidava as pernas finas. Era melhor ser tão vazio na cabeça quanto na barriga. Se resmungasse do frio, estremecia o tronco e não se movia. Nem forças mais tinha para esmolar, nem necessário era franzir os sulcos do rosto em expressão de quem clama por qualquer miséria. Deixava a aflição acometê-lo naturalmente. Na esquina a pena não estava mais, e ele era um empecilho, se se notasse, perceberia como a inconveniência personificava-se em sua pessoa. Um indigente que ainda se sustentava nos pés descalços de gigantes unhas tortas e encravadas. Não se vestia, era enrolado por farrapos encardidos que antes eram roupas. A pele morena escura era mais escurecida pelas cracas gordurentas, o cabelo crespo era tufos ensebados. O rosto inchado esbugalhava os olhos avermelhados. O olhar direcionava-se ao nada.

Certa vez porém saiu da inércia. Moveu-se lentamente em direção a uma lixeira laranja de plástico pregada no poste mais próximo. A razão poderia ser a fome, a angústia, a vontade de se mover para espantar o frio. Sabe-se lá o motivo que estendeu o braço e o enfiou na boca estreita da lixeira, quase entupida. Quanto mais enfiava, mais lixo saltava. Perseverante, notou que cabia mais de seu corpo. Desejava ser engolido por ela. De repente, a lixeira, como se o ajudasse, moveu-se em sua direção, esticando as laterais da boca para que o coubesse. O braço direito entrou por completo. Alguns copos plásticos, sacos de biscoito e latas de refrigerante caíram no chão para dar-lhe mais espaço. Arriscou o braço esquerto, sem dificuldades. A cabeça poderia entrar com alguns centímetros de boca mais aberta. Raspou alguns tufos na entrada, ralou a testa, saiu sangue, mas conseguiu enfiar o crânio. Era só deixar deslizar o tronco e o restante do corpo.

Por fim, sumiu do mundo externo ao recipiente. Fez daquela lixeira de plástico laranja seu abrigo. Lá dentro era possível encontrar toneladas de material que se reciclado poderiam o tornar milionário, quilos e mais quilos de matéria prima que se usada de forma sustentável o manteria vivo por décadas, comida abundante capaz de alimentar um terço da população mundial, e mais da metade da água potável do mundo, que se utilizada pelos de lá de fora com responsabilidade, jamais haveria sede, terras desgastadas e desigualdades entre seres humanos.

Preferiu ficar ali dentro para sempre, pequeno diante de tanta fartura. Era ele, o lixo e todo desperdício do mundo.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Homem-macaco-homem



Homem-macaco:
Antes era fácil subir em árvore para colher fartas pencas.
Hoje gasta milhões na maior das tecnologias para arrancar uma banana saborosa, geneticamente modificada.

Macaco-homem:
Preso atrás das grades no zoológico, sorri para não encarar a solidão o chimpanzé tabagista. Não sabe se prefere a extinção ou se candidata a prefeitura.


quinta-feira, 6 de março de 2014

Neste carnaval...

... Pierrô descoloriu a face, foi fumar cigarro depois de talagar pinga. Arlequins, encontram-se no atacado, mas ainda têm seus valores, posto que alegria tornou-se artigo de luxo. Colombina, melindrosa, ainda dá o ar da graça, mas os olhos refletem o cinzento do céu. Na cidade maravilhosa, neste carnaval, a commedia dell´arte carrega amargura na jocosidade. 

Ah, se ao menos as fantasias fossem socialmente permitidas após a quarta-feira de cinzas.

Pode até ser soturno, mas ainda sim é carnaval.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Um cordel de Moizés Nobre

"Eu vou contar pra vocês
A minha história muderna
Que fizemos no passado
Aqui mesmo na taberna.
Me aparece um engenheiro
Dizendo: — Esse seu puteiro
Está nos tempos da caverna!
Precisa modernizar,
Fazer um circuito fechado,
Passar uns filmes pornôs
Com vídeo game importado,
E ter um computador
Pra ser administrador.
Tô vendendo barato! -
Achei aquilo esquisito,
Conversa de vendedor,
Pois inté que eu ia bem
No comercio do amor.
Mas o sujeito insistente,
Termina enrolando a gente,
E comprei um computador.
Então veio o cabloco
Instalar o danado.
Eu então chamei Cidinha
Pra aprender seu bordado.
O moço tinha ciência,
E explicou com paciência
Cada botão do teclado.
Explicou o que era mouse,
Falou do que sabe,
No break, modem, planilha,
Software e backup,
Programa, aplicativo,
Reset, drive, arquivo,
Winchester, delete e escape.
Explicou como se liga,
Como entra, como chama,
Depois perguntou a Cida:
— Qual seria seu programa?
— De noite afogo o ganso
E de dia descanso.
É dia e noite na cama! -
O cabra perdeu a linha,
E veio se queixar pra eu:
— Expliquei o dia inteiro
E a moça não entendeu,
Preciso de moça fina,
Que a gente mal ensina
E a danada não aprendeu!
— Mas meu senhor,
Depois de tanto estudar,
Não sabe que no puteiro
Existe outro pensar?
Aqui não tem moça fina,
E rege outra doutrina,
Essas daqui pode explicar!
E pra quê computador,
Se dele ninguém desfruta,
É que nem disse a Cida
Que daqui é a mais astuta.
Tem coisa que não entendo,
Do Diabo ao mesmo tempo
Com puta mas não computa! –
Pois se ligue, até que gosto
Dessa tal de mudernagem,
Mas sou contra o preconceito
Que condena a vadiagem.
Adoro mulher e cachaça,
E é claro que não tem graça
A vida sem sacanagem!"

Moizés Nobre, também com alcunha de Zé Brasil, é cordelista, artista e produtor cultural de São Luís/MA.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Que obra assombrosa é o homem



"Que obra maravilhosa é o homem", disse por aí alguém orgulhoso com este bicho cognitivo chamado ser humano. Para o bem ou para o mal, tem mania de querer justificar seus complexos criando problemas. É sempre um ser com necessidades, que viram desejos, e por fim sonhos que se materializam em objetivos, muitas vezes bastante subjetivos.
Por exemplo, as ilhas artificais de Dubai, uma das cidades-modelo do capitalismo neoliberal. A cidade dos Emirados Árabes Unidos, uma ditadura de petrodólares muito bem quista pelo ocidente capitalista, estampa o busdoor da companhia de viagens da avenida Nossa Senhora de Copacabana, superengarrafada, rotulada de "cidade do futuro". De repente, um sheike trilhardário resolve fazer uma gigantesca enseada artifical, com extensão dez vezes maior que a própria Copacabana, e que, da vista aérea, de um helicóptero, ou até mesmo de um satélite, é possível ver suas iniciais, seu rosto feioso, enfim, algo semelhante. Recebe aplausos multinacionais pelo feito, apesar de alterar significamente a natureza das marés, que, após tamanha engenharia, provoca intensos assoreamentos. A solução é criar mais problemas: desvia-se a rota de correntes próximas para compensar a escassez provocada pela maré. E assim, sucessivamente, o ser humano acha que brinca ser deus, quando na verdade, cai num ciclo infernal, dispendioso financeiramente, trágico naturalmente, e que o único benefício - se é que pode se chamar de benefício - é alimentar o ego do tal sheike empreendedor. Que obra assombrosa é o homem!

domingo, 5 de janeiro de 2014

Celebre

Celebre.
Cê leva de quebra
Cê lava a cara e a alma,
Cê lança, cê dança,
Cê cansa e cê amansa.

Ser lebre.
Ter febre, ser fibra,
Ser faca, ser caça,
Ser membros, tronco, cabeça,
E cérebro.

Ser celebridade.
Caso sério.

O mundo o garoto muda

Em resposta aos provocadores
Aquele garoto que ia mudar o mundo
Decidiu mudar o mundo.
Subiu no mais alto palanque
A convite de prefeitos e governadores
E expôs passaportes para uma excursão
A Marte.

O primeiro passo virou um capítulo na história,
O segundo, fotografia.

Quando voltou, acabou por ficar longe demais
De tudo e de todos,
E se viu com a cabeça no mundo da Lua.

Mesmo assim, daqui da Terra,
Pixaram-lhe as unhas dos pés,
Vandalizaram-lhe os calcanhares,
Fritaram-lhe as batatas das pernas,
E cozinharam-lhe o caráter no calçadão
Sob um sol de cinquenta e dois graus.

Lá do firmamento, o garoto emudeceu.
Viu que o mundo muda sozinho,
E se viu sozinho
Em algum breu.

Duas duras realidades

Dura realidade I "Quando a lenda se transforma num fato, publica-se a lenda", disse o jornalista sensacionalista do clássico f...