domingo, 4 de novembro de 2007

Veneza

A Veneza melancolia
Que a cor viva repudia
É cinza, é tinta,
É céu, inferno, noite e dia.

Não a veja com os olhos,
Pois tristonhos ficarão.
Alvoreça! branco no preto,
Convide a solidão.

Veneza, és da cidade espelho.


Ah, Veneza... Amanheceste com o céu cinzento e ar soturno. Em cima, as nuvens tomam-te conta todo o firmamento. Embaixo, dançam sobre a água fragmentos da antes solitude, agora aglomerado pomposo que irrompe vigoroso velhas barreiras. Não faz frio, mas o calor não impede que as casacas saiam dos armários. O vapor brota do chão como estufa, e as gotas de chuva misturam-se com o suor lacrimejante. Nas calçadas, os pedestres esquivam-se sem sucesso das poças, apressam-se iludidos de que secos chegarão aos seus destinos. Aperta a chuva, alaga as vias, tornam-se rios.

Ah, Veneza... Não fosse tua cor lodosa que agora pinta as ruas, chamaria-se beleza. Tuas rugas e vincos agora encheram-se devido aos amontoados dejetos sobre os bueiros. Tuas pulgas são ratos nadadores que despejam leptospirose, vizinhos dos mendigos molhados de comida podre e secos de água pura. Tuas veias batizadas de lixo pulsam repulsa, angústia, pústulas pelos ares, preservam seu bolor.

Ah, Veneza... Tu deixas marcas nas pegadas, vestígios no assoalho dos lares onde também resides. Teu aspecto londrino, sombrio, esconde as silhuetas dos cartões postais, que agora são espectros translúcidos, almas de vultos. Teus pais e filhos desatinam desesperados, esguios, e esquivam-se desafortunados das linhas traçadas pela chuva na pintura preta e branca de nanquim. Os arranha-céus não mais arranham o céu: compõem conjuntos o véu taciturno sobre a cidade. O púrpura agora é cinza, o azul virou breu. De teu, resta-me esperar outro dilúvio que carregue pelas vias tua urbana melancolia.

domingo, 23 de setembro de 2007

Cidade Madrugada

São quatro horas da madrugada. A cidade não dormiu ainda. Ela nunca dorme. Daqui mesmo dá pra vê-la acordada. Não que a vista de meu apartamento esbanje um esplendor de vida. Moro de frente para outro prédio, um verdadeiro cortiço de mais de catorze andares. As luzinhas acesas que vejo, aqui do décimo primeiro, são os olhos seus insones.

A cidade toma remédio, tem medo do escuro, pensa no namorado que a deixou, deixa florescer os instintos, chora, fala sozinha. A noite é o momento. Cada luz é como um quadradinho amarelo em um retrato abstrato de fundo preto, e as silhuetas não são apenas contornos contrastantes, mas um universo para o deleite de imaginações. Como a minha, por exemplo.

Em frente a meu apartamento mora uma senhora. Não tão senhora. Aparenta ser balzaquiana, porém bem consumida pelo tempo. Daqui não se pode ver muito. A proximidade dos prédios a deixa constrangida, daí as cortinas. Deve fazer um calor danado, o apartamento é pequeno. Daqui, vejo a claridade de uma saleta. A cortina não está completamente fechada. Deve ser solteira. Viúva, talvez. Tem uma filha, daquelas mimadas que choram e sempre convencem a mãe. Pelo silêncio, a filha está dormindo. A mãe está sozinha na sala. Não vê televisão, já que a luz não está apagada. A maioria das pessoas que vêem televisão de madrugada apagam a luz para esperar o sono chegar. Ela lê um livro, um romance. Paulo Coelho. E ao fim de cada página ela pára, pensa e procura algum sentido para sua vida.

Com todo cuidado para não se esborrachar de uma altura de onze andares, até que dá pra ver o Cristo. Inclinando-se um pouquinho, além de ver um meio cartão postal, ouvem-se uns sussuros baixinhos. A cidade faz sexo. Ver não é necessário: os gemidos dizem muito com poucas palavras. Ela contém os gritos, mas deixa escapar gemidos. Os "uis" são de loba uivando. Não é nada santa. Ao contrário, carnívora, dominadora, o tem sob controle. Ele, coitado, acha que sabe de tudo, só porque, agora, a vê de costas, ajoelhada, à sua frente. Ela o vai engolir por toda essa noite, mastigar, ruminar, e depois cuspir. A manhã dele vai ser como a de um super homem. Pura ilusão. Ele vai estar sozinho na terça, e quando tentar ligar para o celular dela para beber uma cerveja, ela vai estar com outro, numa cama, de quatro, deixando escapar gemidos. Já ele, estará debruçado num balcão de botequim, a frente de um solitário copo de cerveja, e quando o primeiro mambembe puxar assunto, ele o dará aulas de como se dar bem com as mulheres.

Dos vários sons que se destacam somente quando há o silêncio, aquele vindo da janela do nono andar do prédio à frente era um dos mais altos. Risos, gargalhadas, conversas alegres. O timbre das vozes era jovem, de recém-universitários que trocavam experiências. Quatro amigos. Dois moram no apartamento, um conjugado. Não, eles não são "conjugados". Perdoem-me o trocadilho, é que por estas épocas as preferências sexuais andam bastante variadas. Mas um destes dois não esconde a sua opção por rapazes iguais a ele. Quanto ao outro, são muitos os que desconfiam. Os dois visitantes não se constrangem. Formam um belo casal de namorados. Sim, namorado e namorada. Tudo bem que ela já trocou bitocas com outras mocinhas, enquanto ele diz não sentir atração por homens. Os quatro conversam exatamente sobre relações, contando mínimos detalhes, tudo movido a vinho barato. Daí as altas risadas, as exaltações, os ânimos vibrantes, de quem não teme viver. E quando contemplam o passado, o que fazem é gargalhar.

(...)
Por fim, debruçado no parapeito, ele fuma. Bem que gostaria que o cigarro fosse daqueles artesanais, que dão onda, mas não. Também ele não se importa com isso. Ele fuma e pensa naquilo que observa. As luzes da cidade o encantam. Considera todas matéria-prima da vida. Ou da arte. Mistura tudo o que imaginou nesta noite, encontrando diversas respostas. E o dobro de dúvidas. Fica cansado. Nem precisa olhar o relógio, já amanhece. As luzes não contrastam mais na escuridão. A cidade vai levantar da cama para mais um dia. Ele vai dormir.
(reloaded)

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Tropa tudo por dinheiro

Tive um sonho atualíssimo nesta noite: estava com um grupo de amigos (não me recordo de nenhum deles) num boteco, daqueles com azulejos de cores fortes, mesas de sinuca com feltro rasgado e copos mal lavados.

Boteco no alto de uma favela. Música alta ensurdecedora, fumaça e cheiro forte de cigarro no ar, mulatas e morenas jambo debruçadas no balcão, balançando os quadris semi-despidos. De repente, ouvem-se estampidos, tiros vindos de perto. O bar esvaziou-se e, sem me recordar a razão, permanecemos no local, enquanto entravam para averiguação alguns traficantes armados, com metralhadoras nas costas e pistolas na cintura.

No sonho, pensei: "Xi, fudeu! É minha hora." Comecei a contar os segundos que levariam para o grupos nos avistar, assim como imaginar quem cairia primeiro, ou ensaiar algum discurso de que éramos da paz e não iríamos atrapalhar em nada. Um deles falou:

- "Ih alá aqueles malucos ali!" - a aflição bateu, e eu acordei.

Acordei como se levasse uma martelada na cabeça. Coloquei a mão na testa e respirei ofegante. Mas o transtorno logo passou. Nada no sonho me fazia duvidar dos que estavam comigo no bar, ou eram boêmios vagabundos ou maconheiros, e traficante não mata maconheiro que compra droga na sua boca. Deviam estar de tocaia no enfrentamento com a polícia. Não sei.

Lembrei destas imagens logo que terminei de ler os depoimentos do cineasta José Padilha sobre as repercussões do fenônemo "Tropa de Elite". Não comprei no camelô (talvez compraria), mas assisti ao filme a partir da gravação que um amigo fez, baixada da internet.

Hoje é a pré-estréia do longa que conta os bastidores do Batalhão de Operações Especiais da Polícia, o BOPE. É assunto irrefutável em qualquer mesa de botequim, quiçá até as pessoas do sonho discutiam sobre. Ontem mesmo foi um dos temas abordados entre a rapaziada reunida num bar de Niterói. Eu também queria falar sobre, sedento em compartilhar minhas impressões pós-filme. Todos querem expor opinião, já que a realidade não só bate a nossa porta, ela entra sem bater, senta displicente no sofá e liga a televisão na Rede Globo para dispersar um pouco a tensão do dia-a-dia.

Ao contrário dos outros filmes que abordam essa tal realidade urbana que vive o Rio de Janeiro, "Tropa de Elite" conta a versão policial da história. E isto é válido para trocar figurinhas. Mas foi inesperada a polêmica respingada em todas as direções. A Polícia Militar nada gostou das acusações de descaso e corrupção das tropas, o BOPE também não aceitou as imagens de tortura exibidas, a classe média alta adorou ver o Wagner Moura dando uns sopapos nos favelados e a militância contra o caveirão achou que relevava a imagem da polícia.

Enquanto isto, vende como água nos camelôs as cópias piratas. Já tem até a terceira versão! A polícia agora é pop, doa a quem doer. Só falta surgirem bonecos "Falcons" uniformizados como "caveiras" do BOPE, e miniaturas do "Caveirão", como nos "Comandos em Ação". A política bélica do Estado do Rio caiu nas graças da população, e isto é preocupante.

Todo este afã pode amenizar a urgente necessidade de se rever o que o Governo do Estado anda fazendo com quem mora na favela e a forma romantizada que intelectuais e estudantes de ciências sociais vêem os traficantes.

A corrupção atende a todos: os "caveiras" são corruptíveis, assim como os presidentes das associações de moradores. A PM, então, nem se fala, pois a lama já ultrapassou a linha do pescoço.

Este "remédio amargo" é como eletrochoques em loucos desdenhados pelos psiquiatras. Deixando as metáforas de lado, quem desdenhou da população das favelas foi o Estado, durante décadas (sobretudo durante as rapinagens de Rosinha/Garotinho, Itagiba e Álvaro Lins).

O buraco é mais embaixo, "o bagulho é doido", "o alemão é mais complexo".

(na falta de um título para este texto, um trocadalho do carilho)

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O que me ensinaram

O encarniçamento obstinado na mídia sobre Hugo Chávez monitora, se bobear, até suas flatulências. Mas às vezes, quase sem querer, aborda questões polêmicas que suscitariam discussões proveitosas a todos, sobretudo nós, tupiniquins.

Por exemplo, hoje, em matéria virtualmente suitada do artigo de Ali Kamel do dia anterior, o Globo faz duras críticas ao novo modelo educacional da Venezuela. Segundo a notícia, as crianças venezuelanas desconhecerão a palavra "mestiço", passando a considerar a tonalidade de suas peles de "pura". Também nada aprenderão sobre a Comunidade Andina de Nações, ao contrário dos aprendizados sobre as revoluções na Coréia do Norte, México e Cuba, que serão aprofundados.

Ah, como eu gostaria de ter aprendido em meu colégio, particular, aprofundamentos sobre a Guerra da Nicarágua, a Revolução Zapatista, as atuações de Simón Bolívar! Não digo que o professor não abordou tais temas, mas tudo de forma breve. Preocupava-se em nos passar as características da Guerra de Secessão, as conseqüências da Lei do Chá e do Selo, o modelo fordista. Sabíamos de tudo sobre a história americana (perdão: ESTADUNIDENSE), como o melhor exemplo de país moderno e livre das amarras da metrópole. Quem não sabe o que é uma "negligência salutar"? Formei-me achando que "se eu fosse americano, minha vida não seria assim".

O artigo de Ali Kamel, "O que ensinam às nossas crianças", de terça-feira, 18 de setembro, é um apanhado de trechos do novo livro didático "Nova História Crítica", distribuído pelo MEC para alunos da 8ª série, seguidos de duras críticas ao que ele considera "modelo marxista de ensino". Vou fingir, ao menos por este parágrafo, que não enxergo a hipocrisia kameliana, concordando em parte com o que o arcebispo global prega. Realmente, se antes nosso modelo de ensino contava a história apenas dos vitoriosos, agora o que teríamos são justificativas dos genocídios stalinistas. É o outro lado da mesma moeda.

Mas estou num novo parágrafo e a hipocrisia kameliana me causa pruridos. Não lembro de nenhum articulista de jornal criticar nosso sistema de ensino, mesmo sendo nítida a deficiência dos alunos em conhecimentos gerais nos ENEMs da vida. Pois então esta é uma oportunidade para revermos o código de educação ensinado nos colégios.

Questiono-me se foi descaso do meu colégio, na época um dos cinco primeiros na lista de aprovados da UFRJ, sequer citar duas grandes referências literárias da História e Sociologia brasileiras: "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Hollanda; ou incitar discussão em sala de aula sobre nossas origens, baseado nestas duas obras. Aliás, o método cronológico e pragmático de ensino sempre foi questionamento das faculdades de Pedagogia, raramente sendo revisto pelos professores. Por quê não voltaram com as cadeiras de Ciências Sociais e Filosofia no ensino médio, banidas pelo Regime Militar?
Ensinar Karl Marx apenas por seu socialismo marxista, sustentado num manifesto escrito quando jovem, e esquecer que pensar marxismo sem um pé na Filosofia, é dar galopes sobre uma camada fina de gelo.

No ensino fundamental, recordo-me do livro de "Estudos Sociais e Razão Cívica", isto sim uma manipulação ufanista dos militares sobre as crianças. Além de decorar os afluentes do Amazonas, deveríamos, diariamente, celebrar a bandeira. Um grande tédio. Chatíssimo também era a forma, mais tarde, de contar os períodos colonial e pós-independência do Brasil, cheios de distorções que só Eduardo Bueno, com sua trilogia literária ("A Viagem do Descobrimento", "Náufragos, Traficantes de Degragados", e "Capitães do Brasil"), foi capaz de derrubar com uma didática prazerosa.

Contextualizar a Guerra Fria com os movimentos revolucionários dos fins da década de 60, assim como todas as manifestações urbanas ocorridas no Brasil e no mundo, era raro. Os "eventos históricos" pareciam isolados. Da mesma forma, a influência ESTADUNIDENSE é considerada natural, afinal, foi "a primeira nação moderna a se tornar independente de sua metrópole", e serviu de base para os "revolucionários brasileiros", como na Inconfidência Mineira e Revolução Pernambucana. Só que quase não mencionam que estes movimentos "brasileiros" nada tinham de patrióticos, eram regionais e defendiam interesses exclusivos da burguesia emergente.

Exemplos das distorções históricas que nós aprendemos nos colégios são incontáveis. As conseqüências de nosso ensino estar apenas voltado para formar ao mercado de trabalho e de consumo esvazia a mente das crianças. Para quê me serviu decorar o nome do caramujo hospedeiro intermediário da esquistossomose, em vez de entender por quê uma doença dessas ainda existe no meu país?

Quanto ao novo livro do MEC, concordo com o trecho a seguir:

"Terras, minas e empresas são propriedades privadas. As decisões econômicas são tomadas pela burguesia, que busca o lucro pessoal. Para ampliar as vendas no mercado consumidor, há um esforço em fazer produtos modernos. Grandes diferenças sociais: a burguesia recebe muito mais do que o proletariado. O capitalismo funciona tanto com liberdade como em regimes autoritários."

Só queria saber onde Ali Kamel discorda deste trecho...

P.S. O nome do caramujo hospedeiro intermediário da esquistossomose, também conhecido como barriga d´água, é bionfalária. Explicações biológicas à parte, a doença é causada por falta de saneamento básico.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Cacciolas

Lendo as reportagens desta segunda-feira, bateu uma saudade de Cacciola. Não do Salvatore. Há sete anos atrás, minha mãe ganhou um casal de gatos vira-latas. O macho, ainda filhote, brincava serelepe com a fêmea, Lili, que o deixou com uma fenda cortada na orelha, como a dos gatos da turma do Manda Chuva. Meu pai o batizou de Cacciola.

Gato de rua, ficava em casa apenas durante o dia, quando queria conforto, comida e afagos. À noite, saía para a rua de cima e se misturava com outros gatos atrás de aventuras: passarinhos perdidos, miados à lua-cheia, gatas no cio (que pena que era castrado!).

Eu o chamava de "gato-tapete", de tão manhoso e folgado. Chegava em casa e deitava como um tapete de boas vindas. Era um bicho boa praça. Mas um desalmado vizinho, dando uma de agente da carrocinha, resolveu envenenar os bichanos. Cacciola não sobreviveu, e foi encontrado morto, estirado na calçada com corpo endurecido.

O outro Cacciola, o Salvatore, era um banqueiro que se aproveitou da instável economia brasileira para comprar dólares a preço de banana do Banco Central. Tudo com o aval do então presidente da instituição, Francisco Lopes. É bom deixar claro que estes dólares comprados foram, na verdade, dinheiro público, o equivalente a R$ 1,5 bilhão.

Então as reportagens resolveram lembrar de Salvatore, que foi pego pela Interpol em Mônaco dias atrás, depois de sete anos foragido. O Globo noticiou e a Folha explicou. Mas da lembrança, ficou o esquecimento de que era época de Fernandinho Henrique Cardoso na presidência. O nome do ex-presidente da República pelo PSDB nem é citado nos links.

Pra quê lembrar? Em época de campanha de "limpeza" de Brasília, os abutres de sempre esperam ansiosos para volta dos velhos tempos, quando o Brasil rumava nos trilhos da "mudernidade" neoliberal. E Fernandinho, agora que se prepara engomado a ser padrinho desta retomada, deve ser blindado como nunca.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Fotografia

"Análise

Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo."

Fernando Pessoa, 1911



Os olhos costumam ser o espelho da alma. Vistos de perto, são capazes de dizer muito do que se imagina, vitrine permeável da essência do ser. Ultrapassar esta fronteira vítrea é entender aquilo que passa a quem se olha, é pedir livre permissão a postar-se como o observador exclusivo, é despir a veste do observado.

Os espelhos não são bastante para olhar o próprio olhar. Posto que espelhos, é apenas imagem refletida. Mas não importa o olhar-se, e sim olhar o próprio olhar, o que se vê e da forma como se vê. A abstração dilui-se então em cores distribuídas na paleta, e elas dançam, compõem a imagem, fazem caretas sarcásticas ou sorrisos convidativos. É a porta que se abre, é a casa que se sente.

Assim andava pelas ruas da cidade, como uma lente móvel atraída pelas cores, texturas e movimentos ao redor. Parava o olhar aos mínimos detalhes despercebidos pela maioria dos olhos. Registrava espetáculos dançantes das folhas secas levadas pelo vento, dos passos em marcha ritmada da jornada diária, dos pés, dos pisos, dos tons impressionistas formados pelo gradiente perfeito do azul no céu, dos rastros espectrais de objetos apressados, dos sujos contrastes do meio fio.

Na retina impregnavam-se tais imagens, num deslumbrante acervo, que lembrava todos os dias antes de dormir. Sentia-se aliviado, como se a nostalgia pairasse sempre no ciclo temporal que é o dia, o único que importava. A felicidade marcava os vincos da face quando olhava o ventilador de teto a girar sobre seu corpo, sozinho na cama. E dele rotações representadas pela suave penumbra sobre os olhos, espirais de emoções. Pensou como seria se tais imagens fossem reveladas, se fosse possível registrar em fotografias o que viu durante o dia. Poderia apreciá-las a qualquer momento, rememorar instantes, percepções.

Comprou uma câmera. No dia seguinte, empunhada diante dos olhos, saiu pelas mesmas ruas que sempre circulou, procurou as mesmas faces que sempre o atraíram, deixou-se admirar pelas mesmas cores que sempre reluziram diante de si. Cada disparo preenchia uma lacuna adormecida há séculos, a satisfação icástica que impregnava-se como cristais de prata num papel fotográfico. Era o mundo diante de sua lente. Nada o escapava.

Na quarta rua em que passava, tão entorpecido pelas lancinantes formas urbanas, deparou-se com um enorme espelho. Viu-se fotografando. Como uma estátua perdida, exposta num lugar errado, fora do contexto da curadoria, desejou ser invisível ou um ente diáfano com livre circulação. Talvez assim o fosse, já que o refletido no grande espelho era nada mais que intocáveis transeuntes apressados de expressões cerradas. Porém quem o intimidava era esta mesma estátua deslocada, de olhar direcionado ao dele próprio. Afastou a câmera da face, correu-lhe a sensação de baque, eriçou-lhe os pêlos, corroendo as estruturas de mármore que compõem sua alma.

Sentiu-se estranho ao notar que, mesmo se os cacos desmoronassem sobre a calçada, juntando-se ao lixo numa mixórdia deserdada, tudo continuaria da mesma forma de sempre. E logo por esta malfadada torre inconveniente de observação e seu intento em revelar fotografias do intocável dia-a-dia. Quem era aquele indivíduo com pretensão de capturar o sentido natural das coisas?

Sentiu-se pequenino, mas não resistiu aos grunhidos dos pombos sobre os fios contrastantes ao céu anil. Levantou a máquina e, ao pressionar o botão, um velho com vincos profundos na face e barba cinzenta o esbarrou, num brusco solavanco que abalou a tênue estrutura de mármore. O xingamento deferido pelo velho terminou por rompê-la. Desmoronaram os cacos da torre de observação no meio das vias, pedregulhos interferentes ao tráfego. Era demais para ele.

Preferiu guardar a máquina. Como resposta aos conflitos, concluiu que não nasceu com dom para fotografia, pesando-lhe o fardo de fotógrafo invasor da realidade, paparazzo da natureza. Mas não abandonou o costume de observar com os próprios olhos, agora com a cicatriz da pequenez diante dos fatores do mundo. Era como se a torre de observação reduzisse de tamanho, com a altivez de um naco de grama no pasto extenso.

Sentado na praça no banco cinza de concreto e textura áspera, olhava à sua volta o verde mal capinado, o chafariz poluído refletindo as silhuetas dos prédios, os corpos cheios de sono cobertos de panos rudes. A admiração tornou-se amarga. Percorria com a palma da mão o concreto do banco, como se tentasse capturar, num processo osmótico, aquilo que o rodeava. Correu-lhe uma lágrima na face. Sentiu-se inútil.

No dia seguinte, trancou-se em casa, no quarto escuro. Não queria ver nada. Porém não o escapavam as imagens captadas durante o dia. Inconsciente, organizava cada uma delas mentalmente, num invisível portifólio.

Esta noite não fechou os olhos, apenas olhava a escuridão, como um farol quebrado.

O sol raiou pela janela e viu-se obrigado a levantar. No caminho ao banheiro, percebeu um envelope no chão, fechado, deixado pelo vão da porta do apartamento. Pegou, não notou remetente algum. Ao abrir, deparou-se com fotografias. Incrivelmente, eram as mesmas imagens que captou com o olhar nos últimos dias. Pasmado, não pôde deixar de se surpreender com a singeleza e naturalidade das imagens. Eram de diversos tipos, a silhueta negra do pombo contínua aos fios elétricos onde pousava, contrastando ao anil do céu, os vincos enrugados do rosto do velho que passava, os pés sujos, em close, dos mendigos que dormiam sob cobertores rudes e curtos, a tranqüilidade conformada do lago sujo, onde refletiam-se as silhuetas dos prédios. Contudo, havia um atenuante: todas eram melancólicas, de ar triste, soturno. Lembrou-se da véspera, quando, sentado na praça, uma gota de lágrima percorreu-lhe o rosto; sentiu-se novamente um nada.

Eram lindas fotos, comparadas às consagradas de poucos nomes da fotografia que ele conhecia. Estava encantado. Perguntou-se como era possível revelar o que viu, da mesma forma em que outrora havia desejado. Pensou em pendurar algumas num quadro, mas não passava de lapsos de euforia. Não tinha coragem de mostrar a ninguém as fotografias. Era seu olhar que reconhecia ali, e angustiava-se por se notar tão insignificante quanto no momento em que o registro foi feito. A busca inconsciente pelo próprio olhar havia terminado até o momento, e o revelou melancólico. Guardou todas as fotografias numa caixa.

Todos os dias, um novo envelope chegava, com os registros do dia anterior. O sentimento era o mesmo, de admiração e resignação. Colocava tudo na caixa, escondida num baú. Às vezes, antes de dormir, pegava as fotos, olhava uma por uma, relembrando-se do momento em que, sozinho, compreendia o mundo ao redor. Era um mundo melancólico.

Passaram-se anos, décadas. Graduou-se como engenheiro, casado e três filhos bem criados. Das fotografias de família expostas nas estantes da sala, nenhuma foi tirada por ele. Jamais pegou uma câmera na mão desde o dia em que se viu fotografando num espelho da rua.

Morreu não muito idoso, taciturno, melancólico.


Décadas depois, a exposição da Galeria de Artes reunia um acervo fotográfico que percorreu quatro cidades. Mais de duzentas visitas diárias, e com curadoria da filha do autor das fotografias, que também é fotógrafa.

"Só depois que meu pai faleceu descobrimos uma caixa com todo este acervo. Fiquei impressionada com o que vi. Acho que estas fotos foram tiradas como passatempo em sua juventude. Depois que casou devia ter se cansado."

Ela revelou que nunca viu o pai com uma câmera na mão, e que ele até tinha certa aversão ao ofício.

"Mas ao ver estas fotografias, lembro de meu pai nos momentos de solidão, pensativo. Eu sempre o admirava e tentava imaginar o que se passava por sua cabeça."

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Passaporte para visibilidade

Era um homem invisível. Na verdade, não chegou a ser homem adulto, mas se comportava como. Pagava contas, dormia tarde, acordava cedo. Conhecia todos os cantos do centro da cidade, as passagens secretas, os escritos nos muros, os olhares apressados. Estes, então, mais do que ninguém, já que os encarava todos os dias, todas as horas, mesmo sendo invisível. Mas foi num fatídico dia que se tornou visível. Foi concedido, então, o passaporte para visibilidade.

Nasceu invisível. Burlou os trâmites cadastrais que registram o homem atual, que o torna visível. Nem a própria família o enxergava, pois a ausência era constantemente presente. O pai, conhecido pelas vielas por onde sempre circulou, desgraçava-se pelos botequins, acostumado a trocar raras esperanças por goladas de cachaça. Esquivava-se, queria tornar-se cego da realidade, da vida, da família, da esposa, do filho invisível. Mas o peso das regras da sociedade em que vivia debruçou-se sobre suas costas. Foi morto pelos seus comuns por estuprar uma menina de 12 anos. Uma afronta à lei dos homens.

A mãe, ainda viva, está presa por furto. Passava dia e noite lavando roupas, enxugando louça, esfregando latrinas de um mundo deslumbrante. Era considerada uma exceção que fugia ao seu determinismo. Afinal, fora domesticada. Até que a profecia se cumpriu, consolidando o que sempre prenunciou os homens visíveis. Tomado o devido lugar, acabou delatada depois de algumas jóias serem encontradas pela patroa em sua bolsa (dois colares, um par de brincos e um anel). A domesticação de nada serviu. A limpeza das consciências de nada adiantou. Atrás das grades é mesmo o local dos transgressores.
No quintal dos homens visíveis está a verdade. Além dos muros, um vácuo infinito, fora dos alcances, fora da realidade.

O homem invisível ultrapassava estas fronteiras. Conhecia tudo que acontecia dos dois lados. Porém, ironicamente, sentia-se mais livre nas ruas asfaltadas, nas esquinas ocupadas, nos estacionamentos rotativos, nos sinais fechados. Dormia sob às estrelas, pulava as cercas repentinas, corria atrás de vira-latas. Virava lata, dividia migalhas com pombos, bebia cachaça largada, cheirava cola. Circulava pelos meandros de paredões de corpos humanos. Nadava num oceano de veículos, no mar poluído pela fumaça e pelas fezes saídas dos esgotos. Banhava-se em fontes das praças matrizes, rolava, dava saltos mortais, se libertava. Mesmo diante de tanta euforia, ninguém o notava. Até o dia em que descobriu o passaporte para visibilidade.

Consegui-lo não era difícil. Do lado de fora do muro, além da fronteira do olhar, os invisíveis clarificam-se ao seu modo. O passaporte redentor é também o chicote do carrasco, o martelo do juiz. A profecia se cumpriu novamente. O homem invisível não fugiu à regra. Conseguiu o passaporte para sustentar seu vício, aquilo que o faz vivo.

No outro dia, todos o viram. Era assunto nos bares, estampado nos jornais, presente nos pesadelos dos pedestres. A viagem para visibilidade, um assalto na orla, seguido de homicídio. O passaporte, uma pistola 38 milímetros. O homem deixou, então, de ser invisível.

(reloaded)

As idéias...

Se têm-me idéias soltas, fugidias,
Suspensas em fina brisa
Que as dilui como tufão,
Quão será o disparate,
De quedas, ou arremates,
Precipício ou suspensão?

Antologia 2.0

O Antologia de Merda voltou. Continuará a mesma tábua de babosas esmeraldas. Finda a estiagem, as nuvens escuras que surgem no céu carregam o lamoroso penar e alternam-se com esperanças do vapor idílico a emanar das folhas verdes. É muita bosta a fertilizar, e após, festejar a vinda das graúnas. Ei-lo novamente, Antologia!

P.S. Os textos a seguir correspondem a uma antologia da antologia, o feto abortado que ressurge para puxar os pés dos progenitores.

Duas duras realidades

Dura realidade I "Quando a lenda se transforma num fato, publica-se a lenda", disse o jornalista sensacionalista do clássico f...