quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O que me ensinaram

O encarniçamento obstinado na mídia sobre Hugo Chávez monitora, se bobear, até suas flatulências. Mas às vezes, quase sem querer, aborda questões polêmicas que suscitariam discussões proveitosas a todos, sobretudo nós, tupiniquins.

Por exemplo, hoje, em matéria virtualmente suitada do artigo de Ali Kamel do dia anterior, o Globo faz duras críticas ao novo modelo educacional da Venezuela. Segundo a notícia, as crianças venezuelanas desconhecerão a palavra "mestiço", passando a considerar a tonalidade de suas peles de "pura". Também nada aprenderão sobre a Comunidade Andina de Nações, ao contrário dos aprendizados sobre as revoluções na Coréia do Norte, México e Cuba, que serão aprofundados.

Ah, como eu gostaria de ter aprendido em meu colégio, particular, aprofundamentos sobre a Guerra da Nicarágua, a Revolução Zapatista, as atuações de Simón Bolívar! Não digo que o professor não abordou tais temas, mas tudo de forma breve. Preocupava-se em nos passar as características da Guerra de Secessão, as conseqüências da Lei do Chá e do Selo, o modelo fordista. Sabíamos de tudo sobre a história americana (perdão: ESTADUNIDENSE), como o melhor exemplo de país moderno e livre das amarras da metrópole. Quem não sabe o que é uma "negligência salutar"? Formei-me achando que "se eu fosse americano, minha vida não seria assim".

O artigo de Ali Kamel, "O que ensinam às nossas crianças", de terça-feira, 18 de setembro, é um apanhado de trechos do novo livro didático "Nova História Crítica", distribuído pelo MEC para alunos da 8ª série, seguidos de duras críticas ao que ele considera "modelo marxista de ensino". Vou fingir, ao menos por este parágrafo, que não enxergo a hipocrisia kameliana, concordando em parte com o que o arcebispo global prega. Realmente, se antes nosso modelo de ensino contava a história apenas dos vitoriosos, agora o que teríamos são justificativas dos genocídios stalinistas. É o outro lado da mesma moeda.

Mas estou num novo parágrafo e a hipocrisia kameliana me causa pruridos. Não lembro de nenhum articulista de jornal criticar nosso sistema de ensino, mesmo sendo nítida a deficiência dos alunos em conhecimentos gerais nos ENEMs da vida. Pois então esta é uma oportunidade para revermos o código de educação ensinado nos colégios.

Questiono-me se foi descaso do meu colégio, na época um dos cinco primeiros na lista de aprovados da UFRJ, sequer citar duas grandes referências literárias da História e Sociologia brasileiras: "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Hollanda; ou incitar discussão em sala de aula sobre nossas origens, baseado nestas duas obras. Aliás, o método cronológico e pragmático de ensino sempre foi questionamento das faculdades de Pedagogia, raramente sendo revisto pelos professores. Por quê não voltaram com as cadeiras de Ciências Sociais e Filosofia no ensino médio, banidas pelo Regime Militar?
Ensinar Karl Marx apenas por seu socialismo marxista, sustentado num manifesto escrito quando jovem, e esquecer que pensar marxismo sem um pé na Filosofia, é dar galopes sobre uma camada fina de gelo.

No ensino fundamental, recordo-me do livro de "Estudos Sociais e Razão Cívica", isto sim uma manipulação ufanista dos militares sobre as crianças. Além de decorar os afluentes do Amazonas, deveríamos, diariamente, celebrar a bandeira. Um grande tédio. Chatíssimo também era a forma, mais tarde, de contar os períodos colonial e pós-independência do Brasil, cheios de distorções que só Eduardo Bueno, com sua trilogia literária ("A Viagem do Descobrimento", "Náufragos, Traficantes de Degragados", e "Capitães do Brasil"), foi capaz de derrubar com uma didática prazerosa.

Contextualizar a Guerra Fria com os movimentos revolucionários dos fins da década de 60, assim como todas as manifestações urbanas ocorridas no Brasil e no mundo, era raro. Os "eventos históricos" pareciam isolados. Da mesma forma, a influência ESTADUNIDENSE é considerada natural, afinal, foi "a primeira nação moderna a se tornar independente de sua metrópole", e serviu de base para os "revolucionários brasileiros", como na Inconfidência Mineira e Revolução Pernambucana. Só que quase não mencionam que estes movimentos "brasileiros" nada tinham de patrióticos, eram regionais e defendiam interesses exclusivos da burguesia emergente.

Exemplos das distorções históricas que nós aprendemos nos colégios são incontáveis. As conseqüências de nosso ensino estar apenas voltado para formar ao mercado de trabalho e de consumo esvazia a mente das crianças. Para quê me serviu decorar o nome do caramujo hospedeiro intermediário da esquistossomose, em vez de entender por quê uma doença dessas ainda existe no meu país?

Quanto ao novo livro do MEC, concordo com o trecho a seguir:

"Terras, minas e empresas são propriedades privadas. As decisões econômicas são tomadas pela burguesia, que busca o lucro pessoal. Para ampliar as vendas no mercado consumidor, há um esforço em fazer produtos modernos. Grandes diferenças sociais: a burguesia recebe muito mais do que o proletariado. O capitalismo funciona tanto com liberdade como em regimes autoritários."

Só queria saber onde Ali Kamel discorda deste trecho...

P.S. O nome do caramujo hospedeiro intermediário da esquistossomose, também conhecido como barriga d´água, é bionfalária. Explicações biológicas à parte, a doença é causada por falta de saneamento básico.

2 comentários:

Roberta Estevam disse...

Seja bem vindo de volta à terra virtual, escritor.

Gostei desse!

beijos

Anônimo disse...

A gente vive mesmo em meio a um excesso de história morta e desvinculada da vida.

É difícil nos destituirmos dos três egoísmos de que nos falava Nietzsche: O EGOISMO DO ESTADO, O EGOISMO DA EDUCAÇÃO E O EGOISMO DO MERCADO.

Se fosse possível, mais fácil seria vivermos criativamente e plasticamente, num eterno movimento de esquecimento e lembrança quando assim para a vida conviesse.

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