quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Passaporte para visibilidade

Era um homem invisível. Na verdade, não chegou a ser homem adulto, mas se comportava como. Pagava contas, dormia tarde, acordava cedo. Conhecia todos os cantos do centro da cidade, as passagens secretas, os escritos nos muros, os olhares apressados. Estes, então, mais do que ninguém, já que os encarava todos os dias, todas as horas, mesmo sendo invisível. Mas foi num fatídico dia que se tornou visível. Foi concedido, então, o passaporte para visibilidade.

Nasceu invisível. Burlou os trâmites cadastrais que registram o homem atual, que o torna visível. Nem a própria família o enxergava, pois a ausência era constantemente presente. O pai, conhecido pelas vielas por onde sempre circulou, desgraçava-se pelos botequins, acostumado a trocar raras esperanças por goladas de cachaça. Esquivava-se, queria tornar-se cego da realidade, da vida, da família, da esposa, do filho invisível. Mas o peso das regras da sociedade em que vivia debruçou-se sobre suas costas. Foi morto pelos seus comuns por estuprar uma menina de 12 anos. Uma afronta à lei dos homens.

A mãe, ainda viva, está presa por furto. Passava dia e noite lavando roupas, enxugando louça, esfregando latrinas de um mundo deslumbrante. Era considerada uma exceção que fugia ao seu determinismo. Afinal, fora domesticada. Até que a profecia se cumpriu, consolidando o que sempre prenunciou os homens visíveis. Tomado o devido lugar, acabou delatada depois de algumas jóias serem encontradas pela patroa em sua bolsa (dois colares, um par de brincos e um anel). A domesticação de nada serviu. A limpeza das consciências de nada adiantou. Atrás das grades é mesmo o local dos transgressores.
No quintal dos homens visíveis está a verdade. Além dos muros, um vácuo infinito, fora dos alcances, fora da realidade.

O homem invisível ultrapassava estas fronteiras. Conhecia tudo que acontecia dos dois lados. Porém, ironicamente, sentia-se mais livre nas ruas asfaltadas, nas esquinas ocupadas, nos estacionamentos rotativos, nos sinais fechados. Dormia sob às estrelas, pulava as cercas repentinas, corria atrás de vira-latas. Virava lata, dividia migalhas com pombos, bebia cachaça largada, cheirava cola. Circulava pelos meandros de paredões de corpos humanos. Nadava num oceano de veículos, no mar poluído pela fumaça e pelas fezes saídas dos esgotos. Banhava-se em fontes das praças matrizes, rolava, dava saltos mortais, se libertava. Mesmo diante de tanta euforia, ninguém o notava. Até o dia em que descobriu o passaporte para visibilidade.

Consegui-lo não era difícil. Do lado de fora do muro, além da fronteira do olhar, os invisíveis clarificam-se ao seu modo. O passaporte redentor é também o chicote do carrasco, o martelo do juiz. A profecia se cumpriu novamente. O homem invisível não fugiu à regra. Conseguiu o passaporte para sustentar seu vício, aquilo que o faz vivo.

No outro dia, todos o viram. Era assunto nos bares, estampado nos jornais, presente nos pesadelos dos pedestres. A viagem para visibilidade, um assalto na orla, seguido de homicídio. O passaporte, uma pistola 38 milímetros. O homem deixou, então, de ser invisível.

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