São quatro horas da madrugada. A cidade não dormiu ainda. Ela nunca dorme. Daqui mesmo dá pra vê-la acordada. Não que a vista de meu apartamento esbanje um esplendor de vida. Moro de frente para outro prédio, um verdadeiro cortiço de mais de catorze andares. As luzinhas acesas que vejo, aqui do décimo primeiro, são os olhos seus insones.
A cidade toma remédio, tem medo do escuro, pensa no namorado que a deixou, deixa florescer os instintos, chora, fala sozinha. A noite é o momento. Cada luz é como um quadradinho amarelo em um retrato abstrato de fundo preto, e as silhuetas não são apenas contornos contrastantes, mas um universo para o deleite de imaginações. Como a minha, por exemplo.
Em frente a meu apartamento mora uma senhora. Não tão senhora. Aparenta ser balzaquiana, porém bem consumida pelo tempo. Daqui não se pode ver muito. A proximidade dos prédios a deixa constrangida, daí as cortinas. Deve fazer um calor danado, o apartamento é pequeno. Daqui, vejo a claridade de uma saleta. A cortina não está completamente fechada. Deve ser solteira. Viúva, talvez. Tem uma filha, daquelas mimadas que choram e sempre convencem a mãe. Pelo silêncio, a filha está dormindo. A mãe está sozinha na sala. Não vê televisão, já que a luz não está apagada. A maioria das pessoas que vêem televisão de madrugada apagam a luz para esperar o sono chegar. Ela lê um livro, um romance. Paulo Coelho. E ao fim de cada página ela pára, pensa e procura algum sentido para sua vida.
Com todo cuidado para não se esborrachar de uma altura de onze andares, até que dá pra ver o Cristo. Inclinando-se um pouquinho, além de ver um meio cartão postal, ouvem-se uns sussuros baixinhos. A cidade faz sexo. Ver não é necessário: os gemidos dizem muito com poucas palavras. Ela contém os gritos, mas deixa escapar gemidos. Os "uis" são de loba uivando. Não é nada santa. Ao contrário, carnívora, dominadora, o tem sob controle. Ele, coitado, acha que sabe de tudo, só porque, agora, a vê de costas, ajoelhada, à sua frente. Ela o vai engolir por toda essa noite, mastigar, ruminar, e depois cuspir. A manhã dele vai ser como a de um super homem. Pura ilusão. Ele vai estar sozinho na terça, e quando tentar ligar para o celular dela para beber uma cerveja, ela vai estar com outro, numa cama, de quatro, deixando escapar gemidos. Já ele, estará debruçado num balcão de botequim, a frente de um solitário copo de cerveja, e quando o primeiro mambembe puxar assunto, ele o dará aulas de como se dar bem com as mulheres.
Dos vários sons que se destacam somente quando há o silêncio, aquele vindo da janela do nono andar do prédio à frente era um dos mais altos. Risos, gargalhadas, conversas alegres. O timbre das vozes era jovem, de recém-universitários que trocavam experiências. Quatro amigos. Dois moram no apartamento, um conjugado. Não, eles não são "conjugados". Perdoem-me o trocadilho, é que por estas épocas as preferências sexuais andam bastante variadas. Mas um destes dois não esconde a sua opção por rapazes iguais a ele. Quanto ao outro, são muitos os que desconfiam. Os dois visitantes não se constrangem. Formam um belo casal de namorados. Sim, namorado e namorada. Tudo bem que ela já trocou bitocas com outras mocinhas, enquanto ele diz não sentir atração por homens. Os quatro conversam exatamente sobre relações, contando mínimos detalhes, tudo movido a vinho barato. Daí as altas risadas, as exaltações, os ânimos vibrantes, de quem não teme viver. E quando contemplam o passado, o que fazem é gargalhar.
(...)
A cidade toma remédio, tem medo do escuro, pensa no namorado que a deixou, deixa florescer os instintos, chora, fala sozinha. A noite é o momento. Cada luz é como um quadradinho amarelo em um retrato abstrato de fundo preto, e as silhuetas não são apenas contornos contrastantes, mas um universo para o deleite de imaginações. Como a minha, por exemplo.
Em frente a meu apartamento mora uma senhora. Não tão senhora. Aparenta ser balzaquiana, porém bem consumida pelo tempo. Daqui não se pode ver muito. A proximidade dos prédios a deixa constrangida, daí as cortinas. Deve fazer um calor danado, o apartamento é pequeno. Daqui, vejo a claridade de uma saleta. A cortina não está completamente fechada. Deve ser solteira. Viúva, talvez. Tem uma filha, daquelas mimadas que choram e sempre convencem a mãe. Pelo silêncio, a filha está dormindo. A mãe está sozinha na sala. Não vê televisão, já que a luz não está apagada. A maioria das pessoas que vêem televisão de madrugada apagam a luz para esperar o sono chegar. Ela lê um livro, um romance. Paulo Coelho. E ao fim de cada página ela pára, pensa e procura algum sentido para sua vida.
Com todo cuidado para não se esborrachar de uma altura de onze andares, até que dá pra ver o Cristo. Inclinando-se um pouquinho, além de ver um meio cartão postal, ouvem-se uns sussuros baixinhos. A cidade faz sexo. Ver não é necessário: os gemidos dizem muito com poucas palavras. Ela contém os gritos, mas deixa escapar gemidos. Os "uis" são de loba uivando. Não é nada santa. Ao contrário, carnívora, dominadora, o tem sob controle. Ele, coitado, acha que sabe de tudo, só porque, agora, a vê de costas, ajoelhada, à sua frente. Ela o vai engolir por toda essa noite, mastigar, ruminar, e depois cuspir. A manhã dele vai ser como a de um super homem. Pura ilusão. Ele vai estar sozinho na terça, e quando tentar ligar para o celular dela para beber uma cerveja, ela vai estar com outro, numa cama, de quatro, deixando escapar gemidos. Já ele, estará debruçado num balcão de botequim, a frente de um solitário copo de cerveja, e quando o primeiro mambembe puxar assunto, ele o dará aulas de como se dar bem com as mulheres.
Dos vários sons que se destacam somente quando há o silêncio, aquele vindo da janela do nono andar do prédio à frente era um dos mais altos. Risos, gargalhadas, conversas alegres. O timbre das vozes era jovem, de recém-universitários que trocavam experiências. Quatro amigos. Dois moram no apartamento, um conjugado. Não, eles não são "conjugados". Perdoem-me o trocadilho, é que por estas épocas as preferências sexuais andam bastante variadas. Mas um destes dois não esconde a sua opção por rapazes iguais a ele. Quanto ao outro, são muitos os que desconfiam. Os dois visitantes não se constrangem. Formam um belo casal de namorados. Sim, namorado e namorada. Tudo bem que ela já trocou bitocas com outras mocinhas, enquanto ele diz não sentir atração por homens. Os quatro conversam exatamente sobre relações, contando mínimos detalhes, tudo movido a vinho barato. Daí as altas risadas, as exaltações, os ânimos vibrantes, de quem não teme viver. E quando contemplam o passado, o que fazem é gargalhar.
(...)
Por fim, debruçado no parapeito, ele fuma. Bem que gostaria que o cigarro fosse daqueles artesanais, que dão onda, mas não. Também ele não se importa com isso. Ele fuma e pensa naquilo que observa. As luzes da cidade o encantam. Considera todas matéria-prima da vida. Ou da arte. Mistura tudo o que imaginou nesta noite, encontrando diversas respostas. E o dobro de dúvidas. Fica cansado. Nem precisa olhar o relógio, já amanhece. As luzes não contrastam mais na escuridão. A cidade vai levantar da cama para mais um dia. Ele vai dormir.
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