Se pensasse em comida, a fome batia, remoía o estômago e trepidava as pernas finas. Era melhor ser tão vazio na cabeça quanto na barriga. Se resmungasse do frio, estremecia o tronco e não se movia. Nem forças mais tinha para esmolar, nem necessário era franzir os sulcos do rosto em expressão de quem clama por qualquer miséria. Deixava a aflição acometê-lo naturalmente. Na esquina a pena não estava mais, e ele era um empecilho, se se notasse, perceberia como a inconveniência personificava-se em sua pessoa. Um indigente que ainda se sustentava nos pés descalços de gigantes unhas tortas e encravadas. Não se vestia, era enrolado por farrapos encardidos que antes eram roupas. A pele morena escura era mais escurecida pelas cracas gordurentas, o cabelo crespo era tufos ensebados. O rosto inchado esbugalhava os olhos avermelhados. O olhar direcionava-se ao nada.
Certa vez porém saiu da inércia. Moveu-se lentamente em direção a uma lixeira laranja de plástico pregada no poste mais próximo. A razão poderia ser a fome, a angústia, a vontade de se mover para espantar o frio. Sabe-se lá o motivo que estendeu o braço e o enfiou na boca estreita da lixeira, quase entupida. Quanto mais enfiava, mais lixo saltava. Perseverante, notou que cabia mais de seu corpo. Desejava ser engolido por ela. De repente, a lixeira, como se o ajudasse, moveu-se em sua direção, esticando as laterais da boca para que o coubesse. O braço direito entrou por completo. Alguns copos plásticos, sacos de biscoito e latas de refrigerante caíram no chão para dar-lhe mais espaço. Arriscou o braço esquerto, sem dificuldades. A cabeça poderia entrar com alguns centímetros de boca mais aberta. Raspou alguns tufos na entrada, ralou a testa, saiu sangue, mas conseguiu enfiar o crânio. Era só deixar deslizar o tronco e o restante do corpo.
Por fim, sumiu do mundo externo ao recipiente. Fez daquela lixeira de plástico laranja seu abrigo. Lá dentro era possível encontrar toneladas de material que se reciclado poderiam o tornar milionário, quilos e mais quilos de matéria prima que se usada de forma sustentável o manteria vivo por décadas, comida abundante capaz de alimentar um terço da população mundial, e mais da metade da água potável do mundo, que se utilizada pelos de lá de fora com responsabilidade, jamais haveria sede, terras desgastadas e desigualdades entre seres humanos.
Preferiu ficar ali dentro para sempre, pequeno diante de tanta fartura. Era ele, o lixo e todo desperdício do mundo.