A sala de redação era bem grande. A iluminação, um pouco acima da meia-luz, dependia mais do grande telão ao fundo, onde era transmitida a programação, e dos monitores de tela de plasma espalhados nas escrivaninhas, do que das lâmpadas no teto. Os repórteres, ao mesmo tempo em que centravam os olhos nos computadores, flertavam aonde mais emanava claridade, o aquário, ao fundo, onde os editores se reuniam. Lá, ao redor de uma mesa ovalada, com uma vista panorâmica capaz de observar todos que circulavam, eram decididas as pautas do dia. O tom amistoso, permeado de seriedade, demonstrava profissionalismo da equipe de editores, e este mesmo caráter era submetido à voz final do editor-chefe.
Sem muitas dificuldades, era ele o centro das atenções. Como todo editor-chefe que se preze, ditava, através do espelho da pauta, o que seria primordialmente abordado. Não tinha necessidade de levantar a voz potente de locutor, empregando-a morosamente. Concedia direito de resposta, sabia ouvir. Tomava as rédeas da conversa com desenvoltura e diplomacia, sem perder a compostura nem a eficácia. Sentia-se como na própria sala de estar, recebendo convidados, contando histórias de família, sentado numa poltrona particular onde o terno preto descansa no encosto. Gingava sobre a cadeira, dirigindo a quem arriscava alguma idéia a grande cabeça de pequenos olhos e cabelos pretos com uma pequena porém sobressalente mecha grisalha. A gravata azul marinho pendulava, destacando-se sobre a camisa branca. Driblava idéias consideradas descabíveis apenas franzindo o cenho aos que o contra-argumentavam. Intimidava pelo olhar, como se peitasse a alma do pobre debatedor. A eloqüencia exibia um poliglotismo que mesclava português, algo em inglês e uns biquinhos de francês. Comportava-se como um adolescente prodígio querendo impressionar a namorada diante dos amigos. E, ao lado, trajando um blazer acinzentado e uma saia incapaz de cobrir as pernas modeladas pelo balé, a esposa e parceira de ancoragem no mais importante telejornal do país. Ela corroborava as idéias do marido com largos sorrisos, acrescentando comentários pingados. Ele nem precisava olhar para a esposa a fim de se confortar no apoio.
Dos assuntos da pauta, o que mais chamava atenção aos olhos dos editores era o risco de uma nova Tsunami na Ásia. Preocupava-os menos o possível desastre e sofrimento das famílias do que o número de vítimas suficiente para colocar a matéria na abertura do jornal. Até o momento, nenhuma. Os paradigmas clássicos do Jornalismo eram aplicados com perfeição pelo editor-chefe, William Bonner. Mais que isso, os paradigmas da Vênus Platinada sobrepunham-se a quaisquer outros.
Na escalada até o topo do jornalismo da emissora, Bonner era o quarto. Antes dele, Ali Kamel, que também supervisiona o periódico das Organizações, sendo uma espécie de arcebispo do feudo midiático global. O segundo, Carlos Henrique Schroeder, escritor e jornalista, conhecido mais no meio profissional do que aos olhos do grande público. No topo da lista, o dono da emissora, João Roberto Marinho. A relação entre os quatro jornalistas é de extrema confiança. William Bonner praticamente possui toda liberdade para tocar o jornal, de acordo com as diretrizes da empresa. Ele explica que, apenas “em assuntos mais delicados, como os que envolvem o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, os cargos mais altos são acionados. O oposto também ocorre. Constantemente, Ali Kamel telefonava para o celular de Bonner. Despreocupado com qualquer regra de etiqueta, dava para ouvir a conversa até fora do aquário, enquanto os outros editores esperavam, pacientes, conversando entre cochichos.
O aquário é o quartel general do jornal. Daquela salinha, pode-se fazer contato, através de videoconferência, com Brasília, São Paulo, Nova Iorque e Londres. Tudo modernizado. Tela de plasma do tamanho de um imenso quadro, controle remoto e microfone acoplados à mesa ovalada, duas câmeras espalhadas para George Orwell nenhum botar defeito. À porta, aguardavam o fim da reunião seis estudantes de Jornalismo. Iriam conversar com o editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional.
Todas as segundas-feiras a Central Globo de Jornalismo, que fica no bairro do Jardim Botânico, zona sul da cidade do Rio de Janeiro, recebe visita de estudantes. O principal anfitrião é William Bonner. Ele próprio é quem explica o funcionamento de um telejornal, numa espécie de minicurso de aproximados trinta minutos. Depois, reserva uma hora para perguntas. Com ares de professor, diz ser capaz de transformar qualquer pessoa com conhecimentos gerais razoáveis num jornalista excepcional, tudo em seis meses. Formado na Universidade de São Paulo, Bonner sempre atuou no jornalismo como locutor ou apresentador de TV, sendo um privilegiado pela voz grossa e boa aparência. Não possui bagagem em imprensa escrita; pouca como repórter. Começou na maior emissora de televisão já ancorando um telejornal de São Paulo. Durante a vida profissional, o jornalismo foi visto por Bonner por um tele-prompter e uma câmera. Ganhou popularidade no telejornal líder em audiência no país, assim como notoriedade de funcionário exemplar.
Diante das perguntas de estudantes, sobretudo as recheadas com críticas ao jornalismo aplicado atualmente, Bonner parece ter respostas prontas, a toque de caixa. Mantendo a postura de editor-chefe, conversava intimidando, com fala bem articulada, suave. À primeira vista, suas opiniões não diferiram muito dos mais enfáticos questionamentos à imprensa. Após um palavrão, disse odiar Bush, que sente enjôo ao ler a revista Veja e que acha a imparcialidade um mito. Também não escondeu que, por se tratar de um programa de televisão aberta, preocupa-se sim com a audiência. Porém não perdeu a chance de vestir a camisa da empresa, afirmando ser o Jornal Nacional um “patrimônio nacional”, já gozando, então, de “credibilidade ao extremo”.
Como editor-chefe, deve se manter informado sobre os acontecimentos do mundo. Neste assunto, porém, Bonner confirmou ser a imparcialidade algo perecível, tornando-se alvo daquilo que ele próprio critica. Informa-se apenas pelas fontes de onde emana o poder mundial, através das principais agências de notícias e grande mídia. Reproduz assim, mesmo sendo um rapaz latino-americano que fugia das porretadas da polícia no Regime Militar quando ainda era um estudante de Jornalismo, o ponto de vista hegemônico.
Hoje não há perseguições políticas aos estudantes. As preocupações disseminam-se nas diversas causas. Às vezes se pulverizam. No debate com os alunos, William Bonner usava deste artifício. Dizia que a juventude, em vez de se preocupar com causas mais distantes, como a Guerra do Iraque, deveria focar questões mais próximas, na política da cidade, do estado, do país. A defesa do apresentador apoiava-se nos esparsos tiros dados pela esquerda no mundo, sobretudo ao notar um aluno vestindo uma camisa do Fórum Social Mundial; ou ao ser perguntado o que acha da Tele Sur; ou ao ser indagado por quê o Jornal Nacional deu pífia importância à eleição de Tabaré Vasquez no Uruguai, ao contrário de uma edição quase inteira sobre a reeleição do presidente americano George W. Bush; ou ao ser questionado quanto à relevância que seu telejornal dá aos movimentos sociais, como o Movimento Sem-Terra, aos índios ou aos sem-teto.
Houve algumas interrupções por editores ao longo da conversa. O possível Tsunami era um terremoto. Os mais de vinte mortos renderam matéria de abertura. De resto, tudo correu como sempre num dia-a-dia de um telejornal.
Passando do lado de fora do aquário um jovem rapaz foi chamado pelo apresentador. Depois de convidado a participar do bate-papo com os alunos, Bonner o apresentou devidamente. Seu nome é Ricardo. Aparentemente tímido, trajando uma camisa social que parecia ter sido passada a ferro segundos atrás, ele disse fazer estágio na produção do Jornal Nacional. A relação entre os dois aparentava ser bastante próxima, causando surpresa aos alunos. Neste momento, tocou o celular de Bonner, e os alunos aproveitaram para uma pequena sabatina com o estagiário. Sem alongar-se muito nas respostas, e com o olhar evitando encontros, Ricardo contou que cursa Economia numa faculdade particular. A pequena roda de perguntas foi interrompida assim que Bonner desligou o celular. O apresentador retomou as rédeas da conversa e dispensou o rapaz. Horas depois, o guia da visita à Central Globo de Jornalismo, com toda carioquice que dispensa protocolos, revelou aos alunos que o jovem rapaz é neto de Roberto Marinho, filho do dono da emissora, João Roberto Marinho.
Ocupando um dos cargos mais importantes do jornalismo nacional, William Bonner demonstra ser a concretização que todos os trainees e promessas de qualquer empresa sonham alcançar, sempre carregando os ideais da instituição a qualquer canto. Além de ser um profissional qualificado sob idiossincrasias empresariais, o telejornal que apresenta o transformou em figura pública. Poucas semanas antes deste encontro, Bonner tinha sido seqüestrado, o que causou alarde nos fait-divers. Todos os dias, ele entra sem bater nos lares dos brasileiros, como um velho e respeitável amigo que teve extremo sucesso na vida, pai de três filhos, sempre acompanhado da esposa, Fátima Bernardes. Tornou-se um ícone do que representa não apenas o padrão do jornalismo que se pratica atualmente, mas também sinônimo de verdade, de seriedade e de responsabilidade, com o detalhe de ser estes três paradigmas produtos agora pasteurizados, empacotados numa embalagem posta à venda, aquilo que hoje se denomina informação.
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