domingo, 28 de dezembro de 2008

Ah, vozinha

Minha avó sempre foi uma pessoa com problemas. Adorava todos eles, não podia viver sem. O filho mais novo era a fonte da penca de preocupações, e sempre que a imagem de vovó me vem a mente, lembro de seus dedos enrugados coçando a cabeça branca, voltada para o chão, e a boca ruminando resmungos. Ela não queria saber de nada, só das preocupações com o filho. Se alguém desse "Bom dia", ela diria: "Como bom dia? Nessa chuva e fulano teve de ir trabalhar!" Se tivesse sol, o discurso seria: "Bom dia? Um sol danado, fulano saiu cedo e volta só de noite, você ainda diz bom dia?".

Há pessoas que precisam tanto de problemas para viver e por isso nunca são felizes. Rejeitam abraços, beijos, não retribuem sorrisos, não percebem gestos simples porque pensam em problemas. Minha avó sempre teve seus pensamentos norteados por preocupações, e por isso não gostava de ninguém que não fossem os filhos, sobretudo o caçula. Nunca teve muitos amigos. Dizem que era mal vista na rua onde morava, em Vigário Geral, e as crianças a chamavam de bruxa, por causa de sua aparência. Isto ocorria há quase meio século quando os filhos eram moleques de jogar pelada na calçada. A bola caía no quintal, e ela vinha com sua faca acabar com a alegria da criançada. Pelas fotos e desde de que me entendo por gente, ela não mudou nada. Seu envelhecimento começou cedo.

Estas precupações a consumiram durante toda sua vida. Não dava valor a nada, a higiene, aos netos, apenas às preocupações com o filho. O apego às preocupações era tanta, que muitas vezes superava até a própria aproximação com ele, tanto que quando chegava para falar com a mãe, ela simplesmente não dizia nada, como se o mundo já fosse o suficiente, para depois então desmoronar no outro dia, na ida ao trabalho, no trânsito engarrafado, na chuva forte, no telefonema esquecido, no atraso na volta para a casa, tudo preocupações que a faziam passar o tempo. O corpo inerte, e a mente num turbilhão.

Hoje ela está com Alzheimer, e este turbilhão de preocupações se dissipou em brisas. Ela não possui mais vigor mental para sustentar tantas preocupações. Agora, ela facilmente se dispersa, se deixa levar, e por isso percebe situações antes rejeitadas. Um abraço, um beijo, um carinho, agora podem ser sentidos. Ela voltou a um estágio infantil, em que sente uma pureza indescritível das coisas. Esta receptividade reflete em seu exterior, deixando a pele mais corada, os cabelos mais alvos.

Fiquei me perguntando se todos merecem ter momentos felizes ao longo do ciclo da vida, mesmo aqueles que sempre rejeitaram a felicidade. Sabe-se lá o que nos espera depois. Ao menos possamos sair desta para uma outra, mas com lembranças boas, impossíveis de serem esquecidas, ou momentos que representem felicidades, mesmo que em lapsos.

É, isto foi um lapso de reflexão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa Pedro,

adorei esse seu texto as minhas duas avós se encontram nesse estágio. O que temos a fazer é dar carinho.

Bjo

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